quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Guerra que de modo algum termina
Provas únicas de dentro do sistema prisional da Rússia
Radio Svoboda (Rádio Liberdade), 14.11.2015
Amina Umarova

Centenas de chechenos até agora definham no vasto sistema prisional russo, embora combates de grande escala na Chechênia terminaram a mais de uma década e meia. A maioria está presa sob a acusação - que seus defensores frequentemente dizem ser forjada - na participação  do movimento rebelde no curso de duas guerras devastadoras entre as tropas russas e os rebeldes separatistas chechenos. Muitos deles sobreviveram a terríveis torturas.
Suas chances para obter liberdade são muito fantasiosas na atmosfera de total indiferença das autoridades do líder checheno Ramzan Kadyrov, um ex-líder separatista, que foi nomeado por Moscou, para manter sob controle a inquieta república do Norte do Cáucaso, e que governa com mão de ferro. A jornalista da Rádio Liberdade Amina Umarova no decurso de investigação de sete meses, conversou com o insurreto checheno, que é mantido atrás das grades no norte da Rússia por mais de ua década, com uma mulher que luta pela liberação de seu irmão e com um carcereiro compassivo - todos eles encontram-se em interminável e terrível espiral de impunidade e violência.

                                                               Eis suas histórias

 Primeira parte  - Irmã             Segunda parte - Combatente                                       Terceira parte - Vigia
                                                                                                                           

Primeira parte - Elima
Apenas os claros olhos azuis indicam nesta mulher cansada, que perdeu o interesse pela vida, outrora bonita e enérgica Elima. É difícil acreditar, que ela tem apenas 42 anos.  Destes anos, exatamente a terça parte - catorze anos - dedicou às tentativas de libertar seu único irmão Adam, que foi levado de sua casa na capital chechena Grozny durante a "limpeza" e condenado a 18 anos de prisão. Recentemente, ela foi diagnosticada com tumor inoperável no cérebro, - os médicos dizem que ela não viverá por muito tempo. 

"Eu já não tenho mais lágrimas, e meu coração já não dói", diz Elima para mim (nome alterado), quando nós passeamos numa pequena cidade próxima de Praga. Eu já havia pensado, que assim ela vai se expressar, com frases curtas, - mas enganei-me. Nós conseguimos conversar bastante. 

O início da segunda guerra chechena foi cruel. As casas residenciais, bairros inteiros, cidadezinhas e aldeias cercavam e detinham todos, sem escolha. Dominava a violência e prática de extorsão de resgate, de pessoas abatidas à quase morte ou venda de corpos dos mortos à suas famílias. Os militares russos, de bom grado pegavam dinheiro pela "informação" sobre os desaparecidos sem notícia, o que era uma mentira consciente, e em seguida, com injúrias tocavam os parentes, cujos filhos, maridos ou irmãos anteriormente levavam para um destino desconhecido.

Adam foi preso em sua casa no bairro "Outubro" de Grozny. Na noite de 16 de abril, próximo de seu portão pararam os militares UAZes (marca de carro) e veículo blindado. A casa foi invadida por soldados mascarados que, imediatamente, começaram a espancá-lo.

Agosto de 1996 - destruição na Rua da Paz no centro da capital da Chechênia - Grosny.Foto Igor Mykhalov (RIA) "Novosti"

Na fachada, no contravento, preenchida com sacos de areia, com tinta branca estava escrito:  "Nós escarnecemos de sua
adversidade".      
Os soldados observaram com atenção especial o ato de que Adam lia "Decameron", de Boccaccio. Um deles jogou o livro no chão e, xingando grosseiramente, diante de todos abriu a braguilha e urinou nele. O pai de Adam ficou muito brabo: "Como você pode se comportar assim?" Alguns golpes deixaram-no desmaiado. E, à mãe de Adam, que estava deitada no chão ao lado da parede, com ataque cardíaco, ninguém prestou atenção.

Ao amanhecer, a vizinha dos pais da Elima correu para contar a ela o que aconteceu, e disse que os pais estavam mal. A vizinha aconselhou pegar bastante dinheiro para salvar seu irmão, como ela disse, "destes Khanty-Mansiysk aberrações". "Não fazendo isto hoje - depois desaparecerá e não mais poderá ser encontrado", - disse a vizinha e escapou.

"Eu era uma boa costureira, e dinheiro nós tínhamos" - continuou Elima. O grupo operativo do Ministério de Assuntos Internos da Rússia no Distrito de Outubro localizava-se num prédio de três andares, aonde anteriormente havia um internato para crianças surdo-mudas. Quando ela com o marido vieram à entrada principal, lá já havia muitos chechenos, cujos filhos ou maridos recolheram durante a noite. Na fachada preenchida com sacos de areia, no contravento,  estava escrito: "Nós, escarnecemos de sua adversidade".

Nas paredes estavam escritos os nomes das cidades e nomes dos especialmente designados que vieram a Chechênia. Uma daquelas inscrições ela guardou especialmente: "Nós ajudaremos você morrer. MON (Destacamento da Milícia de Propósito Especial e UVC (Departamento de Assuntos Internos) Kanty- Mansiysk". "O sistema consiste em que você, é ninguém, e algum animal sujo com fuzil tem a sua vida em mãos, - diz Elima.  
Mais tarde eu compreendi, o quão bem eles organizaram o  lado financeiro. Quando você lhes dá dinheiro, eles param de dizer: "Eu não o vi, eu não o detive". O dinheiro parece que nos prendia para algum acordo. Eles nunca o recusavam".

Aquele dia Elima levou consigo dois mil dólares, mas seu irmão não libertaram. Disseram-lhe para vir na manhã seguinte, mas quando ela veio, novamente pediram mil e quinhentos. Esperando até tarde da noite, Elima foi embora novamente sem o irmão. No dia seguinte ela soube, que o policial que pegou o dinheiro e prometeu "dar ua palavrinha" por seu irmão, já tinha ido para Khanty-Mansiysk. O expedidor que lhe falou isto, disse, que agora, precisavam de cinco mil. "Agora tudo será mais difícil, começou o julgamento. Mas não se preocupe, seu irmão está vivo", - disse ele.

Cinco mil dólares, que Elina emprestou e entregou ao expedidor não lhe permitiram, sequer, ver seu irmão. Os especialmente designados, muito contentes pegavam as encomendas aos detidos - comida e roupas, - mas, só depois ela soube, que tudo aquilo deixavam para si. Ela já não lembra quem lhe aconselhou a contratar um advogado e quanto ela lhe pagou - apenas diz que foi muito dinheiro. Cada centavo que então possuía Elima, ela gastou tentando resgatar Adam da prisão. Seus pais morreram ainda antes do julgamento - como dizem os chechenos, queimaram de tristeza. Elima vendeu a casa paterna e o carro de Adam quase por nada."Eu não tinha mais dinheiro, - diz ela. As mãos já não me obedeciam - eu não podia mais costurar".

Chegou o dia do julgamento. "À sala trouxeram algo corcundo e inconstante, que quase não conseguia caminhar e apoiado por supervisores, que mancou para a jaula dos arguidos. Quando eu compreendi, que esta criatura de pernas tortas, que arrastavam para sala, -  meu irmão, meu cérebro e meu coração simplesmente explodiram. Parecia uma espécie de delírio cheio de monstros, e eu deveria simplesmente acordar. Eu gritei, e o escoltador próximo à porta primeiramente ficou pasmo, depois me apontou a arma. O advogado pegou o dinheiro, mas até o irmão nunca foi! E, ainda lá ele era torturado", - diz Elima.

Quando o espancavam, lhe diziam: "Agora você nunca terá filhos! Nós excluímos você do pool genético!"

Simplesmente as fabricadas acusações eram francamente absurdas. O juiz estava simplesmente obrigado a justificar a libertação de Adam e libertá-lo na sala do tribunal - mas não se atreveu. Ele monotonamente leu o veredicto: 18 anos de prisão na colônia de regime severo, por terrorismo e assassinato. Mas Adam não matou ninguém! De meus clientes eu soube, que o russo, de cujo assassinato acusaram Adam, simplesmente bebia muito e morreu sozinho. Ele foi enterrado por boas pessoas e eu as encontrei. Eu encontrei o túmulo daquele homem e o fotografei. As testemunhas diziam e juravam, que aquele homem morreu de causas naturais.Tudo o que eu poderia descobrir, eu dei ao advogado. Mas, de repente, coisas estranhas começaram acontecer. As testemunhas, uma após outra começaram negar o que haviam dito a mim. Eu via que elas estavam assustadas até a morte. O "advogado" perdeu minhas fotografias, dados de testemunhos e meus registros sobre o que eles diziam", - diz Elima.

Ela fala sobre as torturas sofridas por seu irmão, e seus punhos se cerram. 

"Antes da prisão meu irmão tinha um metro e noventa de altura. Era um jovem saudável, de 20 anos,
de cabeleira cheia. Ele teve deslocamento de órgãos internos e dedos quebrados. Adam se recusou a assinar o formulário em branco. Então ele foi pendurado numa barra com as mãos e pés amarrados para virar as articulações. E, a ele assim pendurado, colocaram na cabeça um saco de celofane, amarrado no pescoço. E, somente quando ele começava engasgar e perder a consciência, era removido da barra. Mas, enquanto ele sufocava, ele tinha convulsões que lhe causavam dores horríveis. Ele foi colocado na parede, e obrigado a esticar os braços e abrir as pernas. Então eles batiam entre suas pernas e gritavam, que ele nunca mais teria filhos. A ele, no ânus colocaram um tubo e nele um pedaço de arame farpado. Depois retiraram o tubo, deixando lá o arame. Todos vieram  correndo, para ver como este arame puxavam com os intestinos. Isto eles chamam de "rosa". Ele foi obrigado a abrir a boca e queimavam com ferro de soldar, para que não pudesse comer nem beber. Os carcereiros fizeram uma cruz de trilhos, no ginásio do internato. A ela amarravam os detidos e torturavam com choques elétricos. Àqueles que sobreviviam, puxavam de volta às câmeras e jogavam no chão frio. Alguns rapidamente "quebravam-se" e assinavam todas suas culpas e consentimento com a sentença - mas continuavam a torturá-los, simplesmente para seu prazer. Eles bebiam e divertiam-se deste modo", - diz Elima.

Adam não teve sorte, especialmente - por sua altura. Ele também apanhou por ser checheno, e porque era tão alto. Quando o espancavam, lhe diziam: "Agora você nunca terá filhos" Nós excluímos você do pool genético".

Elima estava em desespero, e veio a ela para "conversar" o funcionário do Serviço Federal de Segurança da Rússia, de serviço na Chechênia. Ele apresentou-se como Sergei Bobrov e perguntou quando é que ela colocará em si um cinto explosivo, para se tornar uma suicida. Ela ficou perplexa, mas ele disse, que em seu lugar ele faria isto, para vingar-se dos guardas, que se tornaram completamente perversos".

"Quando eu falei sobre Adam a Anna Politkovskaya(¹) em Moscou, ela chorou. Eu falei sobre tudo isto em seu gravador na redação de "Novaya Gazeta". Ela preparava-se para escrever um grande artigo sobre Adam e outros presos chechenos e falar sobre eles na Europa. Depois que a mataram, me encontraram e começaram a me ameaçar. Havia tudo naquela fita: sobre nossa família, como levaram Adam, sobre as torturas, sobre o julgamento e sobre a quem e quanto eu dava suborno para aliviar o sofrimento de Adam: Primeiro me "sacudiam" os "federais", depois me entregaram aos "kaderivtsy" (de Kaderov), - lembra Elima.

Ela viajou quase toda Rússia - precisamente, cidades onde há prisões. Ela não tinha dinheiro e pegava qualquer trabalho, de enfermeira no hospital à faxineira na estação. Numa atmosfera de histeria anti-chechena, precisava esconder que era chechena. Por sorte, ninguém queria ver seus documentos e empregá-la formalmente para não pagar pensão nem contribuição social.

Estes pequenos ganhos iam para comida e remédios - e não apenas para Adam, mas também para seus companheiros de cela. Mais tarde adicionaram-se aos custos os pagamentos pelo celular: a equipe da colonia tirava estes telefones, para depois vendê-los, novamente, aos prisioneiros.

"Você não é ninguém, mas quaisquer animal sujo, com espingarda, tem em suas mãos, a sua vida."'

Elima passava a noite, onde quer que fosse: se tivesse sorte, em uma enfermaria vazia, mas frequentemente numa dispensa cheia de roupa suja. Ela conseguiu visitar Adam apenas um ano depois que o levaram.

"Eu peguei as mãos de Adam, trouxe-as às minhas bochechas e fechei os olhos. Ele envergonhava-se de seus dedos quebrados, mas brincava, que até o casamento sobreviverá. Eu fingia que comigo estava tudo bem,  e asseverava isto. Nós lembrávamos os pais, nossa infância, como tomávamos banho no rio ou colhíamos bagas na floresta. Nós falávamos até sobre a gata Myshka ou nosso cachorrinho Tarzan.Mas depois, sabendo que nos escutam sorrateiramente, eu pedi a ele colocar a cabeça no meu ombro e fingir que adormeceu. Assim, sussurrando, ele me contou sobre seus tormentos e torturas. Eu acariciava sua cabeça e sentia, quanto inchaços havia. O que vocês fizeram como meu irmão? Sejam malditos!" - diz Elima.

Adam não se entrega, e por isso sempre está encarcerado. Ele luta não apenas por si, mas também por outros rapazes em situação ainda pior. Ele estudou o Código Penal e a Constituição da Rússia e se opõe com sabedoria. Mas os oficiais do FSB, regularmente o visitam, para novamente lhe dizer, diretamente: não o deixarão sair nunca.

Adam contou a Elina que os presos chechenos são obrigados a assumir crimes, que foram cometidos mesmo depois de sua prisão. "Eles não se importam, nem um pouco com a verdade, que as questões, simplesmente desmoronam"" - diz Elima.

"Por que nossos jovens tornam-se radicais? - ela pergunta retoricamente. Porque a metade de nossos rapazes sadios e inteligentes ilegalmente puseram nas prisões, para que uma cinza, depravada pessoinha da KGB possa dirigir um país enorme e preservar o saque de seu antecessor bêbado e seu círculo. E, o restante dos chechenos está condenado a vida miserável. Alguns fogem para Europa, outros para Síria, que lhes é completamente estranha".

Durante muitos anos Elima visitou centenas de jovens chechenos, não seus conhecidos, que ficaram sem família. Ela traz comida e novidades para eles. A seu pedido eu não cito a cidade nem o número da colônia, onde está Adam. Ela diz, que na Rússia não há, sequer uma prisão, onde não haja chechenos acusados de terrorismo, banditismo ou posse ilegal de armas.

(1) -Anna Politkovskaya, jornalista, filha de diplomatas ukrainianos na ONU, foi enviada pelos pais à Rússia para realizar seus estudos em jornalismo na Universidade de Moscou.
Cobria a segunda guerra da Chechênia, especialmente as dificuldades enfrentadas pela população civil e sobre abusos cometidos pelas autoridades russas durante o conflito.
Ela foi assassinada em 07.10.2006 em Moscou, no elevador do prédio, no qual morava.
Já  em 2004 foi medicada no hospital de Rostov ou Don e foi comprovado envenenamento. Naquele dia Anna havia ingerido apenas um chá que lhe serviram durante o vôo.

Por favor, aguardem a II Parte.

Tradução: O. Kowaltschuk

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